segunda-feira, 26 de abril de 2010

Trechos do livro do Huizinga sobre poesia e jogo

Na aula sobre o lúdico, falei um pouco sobre os conceitos de Huizinga. Abaixo, copiei alguns trechos do livro para vocês terem uma idéia e acrescentarem no relatório se quiserem. A referência bibliográfica do livro está embaixo do texto.. Recomendo que procurem o livro (tem na biblioteca!).


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- O jogo é fato mais antigo que a cultura. Mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. Esse fato implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.

- A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo.

- As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e suprimo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. É como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da natureza.

- Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.
A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Representar significa mostrar, e isto pode consistir simplesmente na exibição, perante um público, de uma característica natural. A representação sagrada é mais do que simples realização de uma aparência é até mais do que uma realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada.

- Toda poesia tem origem no jogo. Até que ponto se mantém esta qualidade lúdica da poesia, à medida que a civilização vai se tornando mais complexa?

- Tripla relação: poesia, mito e jogo. O mito é sempre poesia. Trabalhando com imagens e a ajuda da imaginação, o mito narra uma série de coisas que se supõe terem sucedido em épocas muito recuadas. Pode revestir-se do mais sagrado e profundo significado. Pode ser que consiga exprimir relações que jamais poderiam ser descritas mediante um processo racional. Mas, apesar das características sagradas e místicas que lhe são próprias na fase mitopoética da civilização, isto é, apesar da absoluta sinceridade com que era aceite, continua de pé o problema de saber se alguma vez o mito chegou a ser inteiramente sério. Creio que podemos pelo menos afirmar que mito é sério na mesma medida em que a poesia também o é. Tal como tudo aquilo que transcende os limites do juízo lógico e deliberativo, tanto o mito como a poesia se situam dentro da esfera lúdica. Isso não faz do mito inferior, pois pode ser que sob essa esfera lúdica, ele consiga atingir uma penetração muito além do alcance da razão.

- Jogo e Poesia: Os elementos formais da poesia são numerosos e variados: estruturas métricas e estróficas, rimas, ritmo, assonância, aliteração, acentuação, etc., e formas como o lírico, o dramático e o épico. Por mais variados que possam ser estes fatores, mesmo assim eles se encontram em toda a parte do mundo. O mesmo acontece com os motivos da poesia que, por mais numerosos que possam ser em qualquer língua, aparecem em toda parte e em todas as épocas. Essas estruturas, formas e motivos são-nos de tal modo familiares que não nos interrogamos sobre sua existência e raras vezes pensamos em inquirir qual é o denominador comum que os leva a ser como são e não de outra maneira. Esse denominador comum a que se deve a surpreendentemente uniformidade e limitação dos modos de expressão poética em todas as épocas da sociedade humana, talvez possa ser encontrado no fato de a função criadora a que chamamos poesia ter suas raízes numa função ainda mais primordial do que a própria cultura, a saber, o jogo.
Enumeremos uma vez mais as características que consideramos próprias do jogo. É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que ele se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão.
Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades também são próprias da criação poética. A verdade é que esta definição do jogo que agora demos também pode servir como definição da poesia. A ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a mais pura e exata verdade.
Não é apenas exterior a afinidade existente entre a poesia e o jogo; ela também se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora. Na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de um testado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico.

- A finalidade do escritor, consciente ou inconsciente, é criar uma tensão que “encante” o leitor e o mantenha enfeitiçado. Subjacente a toda escritura criadora está sempre alguma situação humana ou emocional suficientemente intensa para transmitir aos outros essa tensão. Em termos gerais, pode-se dizer que essas situações surgem do conflito ou do amor, ou da conjunção de ambos.
Ora, tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou competição, e competição implica jogo. Na grande maioria dos casos, o tema central da poesia e da literatura é a luta – isto é, a tarefa que o herói precisa cumprir, as provações extraordinariamente difíceis por que ele tem que passar. Em geral, ela é empreendida em conseqüência de um desafio, de uma promessa ou de um capricho da pessoa amada. Todos esses temas nos conduzem de volta ao jogo agonístico. Uma outra série de motivos de tensão assenta no disfarce do herói. Ele se apresenta incógnito quer por estar deliberadamente ocultando sua identidade, ou por ele próprio a desconhecer, ou ainda, porque é capaz de mudar sua aparência conforme sua vontade. Em outras palavras, ele usa uma máscara.



(trechos do livro: HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008)

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